Estação deserto
"Senti frio. Senti calor. Senti frio de novo e de novo calor e isto muitas vezes. Estou aqui há dias, semanas, meses. Não tenho a certeza de ter alguma vez estado em qualquer outro local. Mas lembro-me de ter chegado aqui: dei mais um passo e, do branco da luz, saiu a linha. Duas linhas de ferro. Iam para onde vinham e vinham para onde iam: à esquerda e à direita, quanto eu podia alcançar, desapareciam no horizonte.
E silêncio.
Os carris estavam quentes. Escaldavam de brilho. Deduzi, talvez erradamente, que esse calor intacto do ferro tinha sido deixado pelo último comboio. Seria isso, decerto: o último comboio passara há pouco. Bastaria esperar o próximo e subir a bordo. Haveria gente. Haveria água. Haveria destino.
Engano. Nada passou pelos carris, a não ser o calor e o frio do dia e da noite. Ao anoitecer, aproveitava dos carris a suave temperatura que lentamente abandonava o ferro. Ao amanhecer, colhia do metal um toque de gelo, enquanto a noite se derretia sob a inclemência do sol. Isto queria dizer que, duas vezes em cada vinte e quatro horas, abraçava com gosto os carris. Eram horas de transição, breves momentos de paz. No resto das horas, não conseguia sequer pensar. Ou porque o frio me estalava os ossos. Ou porque o cérebro cegava de relâmpagos. Todos os meus sonhos eram boreais – auroras saíram do mais fundo dos meus olhos.
O deserto eterno ria-se de mim. Era um sorriso largo, comprido, dobrado à esquerda e à direita – um sorriso de ferro, com dois lábios finos, finos, finos, duas linhas por onde devia passar um comboio e que cada dia levavam apenas escárnio pela minha desgraça.
Havia algum conforto neste vazio. A constatação do meu isolamento, e de que ele era irremediável, deu-me desespero e confiança. Não havia sinais de sair dali, sim. Mas não havia perigo de dormir nos carris. Era seguro. Seria sempre. Mais estranho ainda: esta cama passou a multiplicar-se. Paralelas às duas linhas iniciais, nasciam outras linhas, tão vazias e sem trânsito como as primeiras.
O deserto, escuro de tão calcinado, encheu-se de carris. Como um grande terminal onde a linha se engorda em muitas plataformas. Só que não havia plataformas. Não haveria nunca um comboio.
Apenas eu dento do meu sono. Um sono sem corpo: um dia estalou, abriu uma brecha, e depois outra, como as pedras que não podem absorver mais luz e rebentam em pedaços, mais e mais pequenos, até que delas resta apenas um milhão de grãos, tão ínfimos e perfeitos que rebolam uns nos outros sem qualquer erosão. O vento leva-os e, na orla do deserto, instala outros desertos de areia.
A minha pele finalmente em quartzo.
E, uma noite, um tremor. O carril antecipa algo. Uma cobra parece vibrar dentro do ferro. Está além, mas está aqui já, vai rolar sobre mim, há um farol que cai sobre o meu sítio e me esconde o deserto. O comboio! Milhões de anos atrasado, mas veio, vai passar, e vai passar por mim neste preciso instan…
- Senhorita! Senhorita! Está tudo bem?
Sim, está tudo bem… Adormeci em minutos. Devo ter assustado o meu vizinho de banco. Devo ter acordado num salto. Há um apito automático, as portas do Metro fecham-se e as carruagens afastam-se na direcção de Montjuic. Era o meu Metro, mas não faz mal. Apanharei o próximo. Passam com intervalos muito curtos."
E silêncio.
Os carris estavam quentes. Escaldavam de brilho. Deduzi, talvez erradamente, que esse calor intacto do ferro tinha sido deixado pelo último comboio. Seria isso, decerto: o último comboio passara há pouco. Bastaria esperar o próximo e subir a bordo. Haveria gente. Haveria água. Haveria destino.
Engano. Nada passou pelos carris, a não ser o calor e o frio do dia e da noite. Ao anoitecer, aproveitava dos carris a suave temperatura que lentamente abandonava o ferro. Ao amanhecer, colhia do metal um toque de gelo, enquanto a noite se derretia sob a inclemência do sol. Isto queria dizer que, duas vezes em cada vinte e quatro horas, abraçava com gosto os carris. Eram horas de transição, breves momentos de paz. No resto das horas, não conseguia sequer pensar. Ou porque o frio me estalava os ossos. Ou porque o cérebro cegava de relâmpagos. Todos os meus sonhos eram boreais – auroras saíram do mais fundo dos meus olhos.
O deserto eterno ria-se de mim. Era um sorriso largo, comprido, dobrado à esquerda e à direita – um sorriso de ferro, com dois lábios finos, finos, finos, duas linhas por onde devia passar um comboio e que cada dia levavam apenas escárnio pela minha desgraça.
Havia algum conforto neste vazio. A constatação do meu isolamento, e de que ele era irremediável, deu-me desespero e confiança. Não havia sinais de sair dali, sim. Mas não havia perigo de dormir nos carris. Era seguro. Seria sempre. Mais estranho ainda: esta cama passou a multiplicar-se. Paralelas às duas linhas iniciais, nasciam outras linhas, tão vazias e sem trânsito como as primeiras.
O deserto, escuro de tão calcinado, encheu-se de carris. Como um grande terminal onde a linha se engorda em muitas plataformas. Só que não havia plataformas. Não haveria nunca um comboio.
Apenas eu dento do meu sono. Um sono sem corpo: um dia estalou, abriu uma brecha, e depois outra, como as pedras que não podem absorver mais luz e rebentam em pedaços, mais e mais pequenos, até que delas resta apenas um milhão de grãos, tão ínfimos e perfeitos que rebolam uns nos outros sem qualquer erosão. O vento leva-os e, na orla do deserto, instala outros desertos de areia.
A minha pele finalmente em quartzo.
E, uma noite, um tremor. O carril antecipa algo. Uma cobra parece vibrar dentro do ferro. Está além, mas está aqui já, vai rolar sobre mim, há um farol que cai sobre o meu sítio e me esconde o deserto. O comboio! Milhões de anos atrasado, mas veio, vai passar, e vai passar por mim neste preciso instan…
- Senhorita! Senhorita! Está tudo bem?
Sim, está tudo bem… Adormeci em minutos. Devo ter assustado o meu vizinho de banco. Devo ter acordado num salto. Há um apito automático, as portas do Metro fecham-se e as carruagens afastam-se na direcção de Montjuic. Era o meu Metro, mas não faz mal. Apanharei o próximo. Passam com intervalos muito curtos."
Crónicas CONVERSAS COM O ESPELHO
de Faíza Hayat publicada in Revista XIS a 04/06/2005
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