Um cheirinho de Manuela Amaral
AUTO DE FÉ
Não me arrependo dos amores que tive
dos corpos de mulher por quem passei
a todos fui fiel
a todos eu amei
Não me arrependo dos dias e das noites
em que o meu corpo herói ganhou batalhas
A um palmo do umbigo eu fui primeira
a divina
a deusa
a verdadeira mulher – sem rival.
Amei tantas mulheres de que nem sei o nome
eu só me lembro apenas
de abraços
de pernas
de beijos
e orgasmos
E no amor que dei
e no Amor que tive
eu fui toda mulher – fui vertical
Eu fui mulher em espanto
fui mulher em espasmo
fui o canto proibido e solitário
Só tenho um itinerário: Amor-Mulher.
SEXO-CAMA
Fui ordinária
requintada
tímida
Misturei poesia com vários palavrões
Gritei
Uivei
Gemi
Rasguei almofadas e lençóis
Fui carnaval de amor
no circo de uma cama.
O ESPIRÍTO DO SEXO
Hoje acordei debaixo de mim
e senti o orgasmo do mundo
no corpo dos outros.
TEU CORPO DE AGOSTO
Teu corpo é agosto
Tu cheiras a verão
por baixo das veias
Tu cheiras a quente
Tu cheiras à febre
do sangue maduro
Teu ventre de orgia
teu cheiro a sodoma
aroma-mulher
Teu corpo de agosto
tem cheiro a setembro
NO CONJUGAR AMOR
Descobrimos coisas
que ninguém mais sabe
Coisas diversas do saber comum.
A transfusão que existe no beijar
quando a ternura é líquida
E a transparência
opaca
do suor
quando o amor é feito
E o jeito que nos fica
de namorar o corpo
E o exagero em tudo que se diz
nas juras repetidas
Descobrimos coisas
que ninguém mais sabe
e que aprendemos juntas.
GRITO ERÓTICO
Caluniaste o meu corpo
ao longo dos teus gestos
sem medida
Desde a palavra exacta
do meu sexo
e soletraste-me puta
Puta
Puta
Angustiosamente erótica
abri-me em coxas
e penetrei-te na minha fauna aquática
Grito marinho
a escorrer nas algas
do meu ventre
Puta
Puta.
É URGENTE QUE AS PESSOAS SE AMEM
É urgente que as pessoas se amem
sem vergonha e sem tristeza
Que se amem com orgulho
Com a alegria pagã da joie grega
É urgente que as pessoas não se escondam
por detrás das outras pessoas
das idéias das outras pessoas
dos muros espessos do medo
É urgente que as pessoas se amem
É urgente partilhar o pão e o corpo
com a claridade da terra molhada
nas manhãs de sol
É urgente assumir a verdade
PEREGRINAÇÃO
Venho de longes mundos
Separam-me distâncias
Trago as madrugadas no meu ventre
E a liberdade das coisas inventadas
num mundo abstraído
em tempo.
POEMA DO AMANHÃ
Num esforço de amanhã hei-de nascer
e dizer aos homens de hoje quem eu sou.
DEUS REINCARNADO
Tenho
um deus
só para mim
incarnado na loucura
da minha lucidez
REBELDIA
Soltem-me
as algemas
Quero
a minha alma livre
meu corpo livre
meu pensamento livre
Esbofetear o mundo
e cuspir
na vida
DESAFIO À MEDIOCRIDADE
Chamem-me
devassa
louca
ou depravada
A vida
não é nada
É preciso
ser tudo
num instante
SER TUDO NÃO BASTA
Não sou homem
nem mulher
nem lésbica
ou pederasta
Sou tudo
Mas ser tudo
não me basta
DESIGUAL
Sou bastarda do amor
Pago o preço da verdade
INSACIEDADE
A minha fome é de dentro
e a minha sede é palavra
PALAVRA POR DIZER
Só agora sou poeta
na poesia que não escrevo
Só agora me transmito
Só agora me transcrevo
Eu silabo no teu corpo
a palavra que não digo
DIZER AMOR
Queria subir às palavras
e gritá-las
E ter o privilégio de inventar
formas diferentes
de dizer amor
RECADO SEXUAL
Não gosto das mulheres
- Só gosto da Mulher
Não gosto do homem
- Só gosto dos Homens
E que cada um pense de mim o que quiser.
SAGRADO IMPROFANO
Nas ilhas mais remotas do teu corpo
fui encontrar o santo graal perdido
MULHER BASTANTE
Eu sei quem és porque em ti decubro
a mulher que foste em mim bastante
DO RITMO AO SEXO
Nasci das raízes do teu corpo
do ritmo acelerado do teu sexo
Nasci dos teus gestos de mulher
e desenhei-me em noite.
HOMO
Introduzi em ti
a força mental de um orgão qualquer
E foste quem sou
E foste mulher
MULHER-TU
Mulher rasgada
no meu sonho aberto
Mulher alerta
no meu estar em tudo.
MULHER (em definição)
Mulher-Poesia
que deixa no meu corpo bocados de poema
Mulher-Criança
que desce à minha infancia
e me traz adulta
Mulher-Inteira
repartida no meu ser
Mulher-Absoluta
fonte da minha origem
MOMENTO
Mulher tão deitada
de mim tão despida
Mulher resumida
em cama de noite
MARÉS VIVAS
Na praia teu corpo
eu sou maré cheia
Em ondas de medo
rebento-me azul
e bebo-te areia
MULHER MAIS
Mulher imensa
Vagina secular
Orgia
Bacanal
Gargalhada solta
em carnaval
Mulher sem direcção
direita ao espanto.
ANTAGONISMO
Foste parida de um deus
Tens os cornos de um diabo.
FATALISMO
Amo o que em ti há de trágico. De mau.
De sublime. Amo o crime escondido no teu andar.
A tua forma de olhar. O teu riso fingido
e cristalino.
Amo o veneno dos teus beijos. O teu hálito pagão.
A tua mão insegura
na mentira dos teus gestos.
Amo o teu corpo de maçã madura.
Amo o silêncio perpendicular do teu contacto
A fúria incontrolável da maré
nas ondas vaginais do teu orgasmo.
E esta tua ausência
Este não-ser quem é.
AMOR GEOMÉTRICO
Angulosamente ternas
goticamente nuas
somos a geometria do amor.
DO NASCER AO SER
Nasci-te. No meu ventre de mulher cresceu teu feto
e foi a minha boca que te deu palavras
e silêncios para tu gritares
Dos meus braços multipliquei teus braços
e dei distâncias para tu voares
Dei-te tempos-de-nada
medidos de coragem
E foste. E és.
TEU CORPO/MEU ESPAÇO
Teu corpo é raiz
rasgando a terra nua
do meu sexo
Teu corpo é vertical
onde os meus dedos tocam as distâncias
Teu corpo é diálogo sem palavras
O grito em ressonância
no meu espaço.
POSSE INTEMPORAL
Fazer amor contigo
não é espelhar teu corpo nu
no vítreo do meu espaço
não é sentir-me possuída
ou possuir-te
É ir buscar-te
ao abismo de milénios de existência
e trazer-te livre.
APOGEU
Mulher em minha cama
Mulher quase animal
Mulher que se transborda
que me sobra
e chega
Mulher deitada no meu corpo insónia.
MODELAGEM
Moldei meu corpo
à tua forma nua
e de nós duas
nasceram madrugadas
ACTO CRIADOR
Com gestos pagãos
dou forma-mulher
à tua estatura
e faço escultura
ao longo das mãos
Num golpe de mestre
renasço-te virgem
em obra criada
Já não és mulher
És só o fluido
que escorre de mim
ideia
vertigem
Depois uma fúria qualquer
começa a alastrar-se
em todo o teu corpo
Um vento selvagem
possui os teus braços
as pernas
o ventre
Um grito demente
percorre-te a voz
E és volúpia
o espaço
e a noite
DE NÓS EM LIMITE
Na luta da posse
meu corpo guerreiro
batalha no teu
Meus beijos em seta
percorrem a meta
atingem loucura
No espaço liberto
da minha procura
tu és o limite
MULHER DE MIM
Mulher secreta
direita ao meu encontro
Meu espasmo de infinito
Meu canto
quase grito
Mulher só-minha
inventada em espanto
HISTÓRIA SEM TITULO
Tu-em-mim
tantas vezes derramada
no orgasmo repetido
Eu-em-ti
tantas vezes já cremada
na fogueira do teu corpo.
CAMINHO ENCONTRADO
Razão e loucura
Abismo de mãos
E gestos em fúria
Palavras
Silêncios
E corpos suspensos
Nas bocas a febre
Nos olhos delirio
Regresso de noite
Caminho encontrado.
COREOGRAFIA
No palco da noite bailado de corpos
Cenário de sombras
esculpidas em nu
Tu danças as mãos
inscreves contornos
na minha nudez
Eu sou dimensão
que dança em teu espaço
Não temos cansaço
Só temos volúpia
Desejo
Harmonia
Vontade de luta
Ao longo de ti descubro caminhos. Trajecto de boca
E danço contigo
E esqueço a memória
Eu sou o teu sangue
A mesma saliva
O mesmo suor
Nós somos a mesma
Mulher-Repetida.
POEMA VERTICAL
Abrimos os corpos. Rasgámos silêncios.
Na mesma vertigem nós fomos o espaço
Nós fomos a sede
Nós fomos a fonte
Abrimos distâncias. E tudo inventámos.
A vida e a morte num gesto de febre
subiam em compasso
em tempo de espera
E a luta
E a raiva
Nas nossa artérias um sangue mais quente
e o teu movimento em ritmo louco
E a minha renuncia de não ser mais eu. De ser o teu corpo. De ser a tua
carne
Baloiço de membros
de pernas e braços
Mulher que eu embalo
que guardo em meu ventre
que bebe de mim
a quem eu me dou
de quem me alimento
Mulher incarnada
na minha loucura
Um grito. Uma pausa. Um gesto mais lento.
E a vida a esvair-se
num estertor da morte
Depois o cansaço no espasmo da noite
E nós renascidas
E livres no tempo.
PARA ALÉM DO AMOR
E muito mais importante do que o nosso orgasmo
é a ternura-depois
o ficarmos abraçadas
o não dizermos nada
o tomarmos um uisque
às cinco da manhã.
ORGULHO QUE ME DOI
Ah, este orgulho que a noite me devolve
A lingua forrada de palavras
e outros líquidos de amor
E a culpa do silêncio que me dás
na incerteza de qualquer verdade
De ti já pouco sei
De mim já me ignoro
Ah, este orgulho que a noite me devolve
e que me dói
AMOR DOENTE
Este amor nasceu do fim
Guardámos naftalina
a imunizar a paixão
Tu e eu
Ciprestes
Nossos corpos cemitérios
inventaram dois jardins
E pintámos de amarelo
um calor a fingir sol
Este amor nasceu no fim
Este amor nasceu doente
Este amor é consciente
é metódico
é razão
é equação que dá certa
Sabemos tudo de cor
O nome exacto das coisas
mas não temos descoberta
Este amor nasceu doente
Este amor nasceu do fim
(amor
amor
meu amor)
LEILÃO
Leiloámos o amor
na praça pública do corpo
DEPOIS-DEPOIS (sem mim)
Amanhã
quando acordares sem mim
talvez te sintas livre
feliz
independente
E depois-depois
na hora em que acordares
(sem mim)
eu estarei lá
sentada no parapeito do teu desespero
a sorrir cinicamente
e a dizer bom dia
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