terça-feira, fevereiro 21, 2006

Um cheirinho de Manuela Amaral



AUTO DE FÉ

Não me arrependo dos amores que tive
dos corpos de mulher por quem passei
a todos fui fiel
a todos eu amei

Não me arrependo dos dias e das noites
em que o meu corpo herói ganhou batalhas
A um palmo do umbigo eu fui primeira
a divina
a deusa

a verdadeira mulher – sem rival.

Amei tantas mulheres de que nem sei o nome
eu só me lembro apenas
de abraços
de pernas
de beijos
e orgasmos

E no amor que dei
e no Amor que tive
eu fui toda mulher – fui vertical

Eu fui mulher em espanto
fui mulher em espasmo
fui o canto proibido e solitário

Só tenho um itinerário: Amor-Mulher.


SEXO-CAMA

Fui ordinária
requintada
tímida
Misturei poesia com vários palavrões
Gritei
Uivei
Gemi
Rasguei almofadas e lençóis

Fui carnaval de amor
no circo de uma cama.



O ESPIRÍTO DO SEXO


Hoje acordei debaixo de mim

e senti o orgasmo do mundo
no corpo dos outros.

TEU CORPO DE AGOSTO

Teu corpo é agosto

Tu cheiras a verão
por baixo das veias

Tu cheiras a quente

Tu cheiras à febre
do sangue maduro

Teu ventre de orgia
teu cheiro a sodoma
aroma-mulher

Teu corpo de agosto
tem cheiro a setembro

NO CONJUGAR AMOR


Descobrimos coisas
que ninguém mais sabe

Coisas diversas do saber comum.

A transfusão que existe no beijar
quando a ternura é líquida

E a transparência
opaca
do suor
quando o amor é feito

E o jeito que nos fica
de namorar o corpo

E o exagero em tudo que se diz
nas juras repetidas

Descobrimos coisas
que ninguém mais sabe
e que aprendemos juntas.



GRITO ERÓTICO

Caluniaste o meu corpo
ao longo dos teus gestos
sem medida

Desde a palavra exacta
do meu sexo
e soletraste-me puta

Puta
Puta

Angustiosamente erótica
abri-me em coxas
e penetrei-te na minha fauna aquática
Grito marinho
a escorrer nas algas
do meu ventre

Puta
Puta.

É URGENTE QUE AS PESSOAS SE AMEM


É urgente que as pessoas se amem
sem vergonha e sem tristeza
Que se amem com orgulho
Com a alegria pagã da joie grega


É urgente que as pessoas não se escondam
por detrás das outras pessoas
das idéias das outras pessoas
dos muros espessos do medo


É urgente que as pessoas se amem


É urgente partilhar o pão e o corpo
com a claridade da terra molhada
nas manhãs de sol


É urgente assumir a verdade

PEREGRINAÇÃO


Venho de longes mundos
Separam-me distâncias
Trago as madrugadas no meu ventre
E a liberdade das coisas inventadas
num mundo abstraído
em tempo.



POEMA DO AMANHÃ

Num esforço de amanhã hei-de nascer
e dizer aos homens de hoje quem eu sou.

DEUS REINCARNADO


Tenho
um deus
só para mim
incarnado na loucura
da minha lucidez

REBELDIA


Soltem-me
as algemas


Quero
a minha alma livre
meu corpo livre
meu pensamento livre


Esbofetear o mundo
e cuspir
na vida



DESAFIO À MEDIOCRIDADE


Chamem-me
devassa
louca
ou depravada


A vida
não é nada


É preciso
ser tudo
num instante

SER TUDO NÃO BASTA


Não sou homem
nem mulher
nem lésbica
ou pederasta


Sou tudo


Mas ser tudo
não me basta

DESIGUAL


Sou bastarda do amor
Pago o preço da verdade



INSACIEDADE


A minha fome é de dentro
e a minha sede é palavra

PALAVRA POR DIZER


Só agora sou poeta
na poesia que não escrevo
Só agora me transmito
Só agora me transcrevo


Eu silabo no teu corpo
a palavra que não digo

DIZER AMOR



Queria subir às palavras
e gritá-las
E ter o privilégio de inventar
formas diferentes
de dizer amor

RECADO SEXUAL


Não gosto das mulheres
- Só gosto da Mulher


Não gosto do homem
- Só gosto dos Homens


E que cada um pense de mim o que quiser.

SAGRADO IMPROFANO


Nas ilhas mais remotas do teu corpo
fui encontrar o santo graal perdido



MULHER BASTANTE


Eu sei quem és porque em ti decubro
a mulher que foste em mim bastante

DO RITMO AO SEXO


Nasci das raízes do teu corpo
do ritmo acelerado do teu sexo
Nasci dos teus gestos de mulher
e desenhei-me em noite.

HOMO


Introduzi em ti
a força mental de um orgão qualquer


E foste quem sou
E foste mulher

MULHER-TU


Mulher rasgada
no meu sonho aberto


Mulher alerta
no meu estar em tudo.



MULHER (em definição)


Mulher-Poesia
que deixa no meu corpo bocados de poema


Mulher-Criança
que desce à minha infancia
e me traz adulta


Mulher-Inteira
repartida no meu ser


Mulher-Absoluta
fonte da minha origem

MOMENTO


Mulher tão deitada
de mim tão despida


Mulher resumida
em cama de noite

MARÉS VIVAS


Na praia teu corpo
eu sou maré cheia


Em ondas de medo
rebento-me azul


e bebo-te areia

MULHER MAIS


Mulher imensa
Vagina secular


Orgia
Bacanal
Gargalhada solta
em carnaval


Mulher sem direcção
direita ao espanto.

ANTAGONISMO


Foste parida de um deus

Tens os cornos de um diabo.



FATALISMO


Amo o que em ti há de trágico. De mau.

De sublime. Amo o crime escondido no teu andar.

A tua forma de olhar. O teu riso fingido

e cristalino.

Amo o veneno dos teus beijos. O teu hálito pagão.

A tua mão insegura

na mentira dos teus gestos.

Amo o teu corpo de maçã madura.

Amo o silêncio perpendicular do teu contacto

A fúria incontrolável da maré

nas ondas vaginais do teu orgasmo.

E esta tua ausência

Este não-ser quem é.

AMOR GEOMÉTRICO


Angulosamente ternas

goticamente nuas

somos a geometria do amor.

DO NASCER AO SER

Nasci-te. No meu ventre de mulher cresceu teu feto

e foi a minha boca que te deu palavras

e silêncios para tu gritares

Dos meus braços multipliquei teus braços

e dei distâncias para tu voares

Dei-te tempos-de-nada

medidos de coragem

E foste. E és.

TEU CORPO/MEU ESPAÇO


Teu corpo é raiz

rasgando a terra nua

do meu sexo

Teu corpo é vertical

onde os meus dedos tocam as distâncias

Teu corpo é diálogo sem palavras

O grito em ressonância

no meu espaço.



POSSE INTEMPORAL


Fazer amor contigo

não é espelhar teu corpo nu

no vítreo do meu espaço

não é sentir-me possuída

ou possuir-te

É ir buscar-te

ao abismo de milénios de existência

e trazer-te livre.

APOGEU


Mulher em minha cama

Mulher quase animal

Mulher que se transborda

que me sobra

e chega

Mulher deitada no meu corpo insónia.

MODELAGEM


Moldei meu corpo

à tua forma nua

e de nós duas

nasceram madrugadas

ACTO CRIADOR


Com gestos pagãos

dou forma-mulher

à tua estatura

e faço escultura

ao longo das mãos

Num golpe de mestre

renasço-te virgem

em obra criada

Já não és mulher

És só o fluido

que escorre de mim

ideia

vertigem

Depois uma fúria qualquer

começa a alastrar-se

em todo o teu corpo

Um vento selvagem

possui os teus braços

as pernas

o ventre

Um grito demente

percorre-te a voz

E és volúpia

o espaço

e a noite




DE NÓS EM LIMITE


Na luta da posse

meu corpo guerreiro

batalha no teu

Meus beijos em seta

percorrem a meta

atingem loucura

No espaço liberto

da minha procura

tu és o limite

MULHER DE MIM


Mulher secreta

direita ao meu encontro

Meu espasmo de infinito

Meu canto

quase grito

Mulher só-minha

inventada em espanto




HISTÓRIA SEM TITULO


Tu-em-mim

tantas vezes derramada

no orgasmo repetido

Eu-em-ti

tantas vezes já cremada

na fogueira do teu corpo.

CAMINHO ENCONTRADO


Razão e loucura

Abismo de mãos

E gestos em fúria

Palavras

Silêncios

E corpos suspensos

Nas bocas a febre

Nos olhos delirio

Regresso de noite

Caminho encontrado.




COREOGRAFIA


No palco da noite bailado de corpos

Cenário de sombras

esculpidas em nu

Tu danças as mãos

inscreves contornos

na minha nudez

Eu sou dimensão

que dança em teu espaço

Não temos cansaço

Só temos volúpia

Desejo

Harmonia

Vontade de luta

Ao longo de ti descubro caminhos. Trajecto de boca

E danço contigo

E esqueço a memória

Eu sou o teu sangue

A mesma saliva

O mesmo suor

Nós somos a mesma

Mulher-Repetida.

POEMA VERTICAL


Abrimos os corpos. Rasgámos silêncios.

Na mesma vertigem nós fomos o espaço

Nós fomos a sede

Nós fomos a fonte

Abrimos distâncias. E tudo inventámos.

A vida e a morte num gesto de febre

subiam em compasso

em tempo de espera

E a luta

E a raiva

Nas nossa artérias um sangue mais quente

e o teu movimento em ritmo louco

E a minha renuncia de não ser mais eu. De ser o teu corpo. De ser a tua

carne

Baloiço de membros

de pernas e braços

Mulher que eu embalo

que guardo em meu ventre

que bebe de mim

a quem eu me dou

de quem me alimento

Mulher incarnada

na minha loucura

Um grito. Uma pausa. Um gesto mais lento.

E a vida a esvair-se

num estertor da morte

Depois o cansaço no espasmo da noite

E nós renascidas

E livres no tempo.




PARA ALÉM DO AMOR

E muito mais importante do que o nosso orgasmo


é a ternura-depois

o ficarmos abraçadas

o não dizermos nada

o tomarmos um uisque

às cinco da manhã.

ORGULHO QUE ME DOI


Ah, este orgulho que a noite me devolve

A lingua forrada de palavras

e outros líquidos de amor

E a culpa do silêncio que me dás

na incerteza de qualquer verdade

De ti já pouco sei

De mim já me ignoro

Ah, este orgulho que a noite me devolve

e que me dói




AMOR DOENTE


Este amor nasceu do fim

Guardámos naftalina

a imunizar a paixão

Tu e eu

Ciprestes

Nossos corpos cemitérios

inventaram dois jardins

E pintámos de amarelo

um calor a fingir sol

Este amor nasceu no fim

Este amor nasceu doente

Este amor é consciente

é metódico

é razão

é equação que dá certa

Sabemos tudo de cor

O nome exacto das coisas

mas não temos descoberta

Este amor nasceu doente

Este amor nasceu do fim

(amor

amor

meu amor)

LEILÃO


Leiloámos o amor

na praça pública do corpo




DEPOIS-DEPOIS (sem mim)


Amanhã

quando acordares sem mim

talvez te sintas livre

feliz

independente

E depois-depois

na hora em que acordares

(sem mim)

eu estarei lá

sentada no parapeito do teu desespero

a sorrir cinicamente

e a dizer bom dia



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